São pequeninas as vidas que enchem aquela casa, algures na velha Lisboa. De quando em vez enchem a minha casa também.
Quem vê de fora não imagina a ternura que mora dentro daquelas paredes altas, envelhecidas, quase sombrias.
Após uma subida íngreme de escadarias e pedras, numa rua onde habita essencialmente gente velha e a espaços um ou outro casal jovem, encontramos finalmente o edificio, com uma faixa da Santa Casa da Misericórdia que o identifica.
É um prédio antigo, quase colado à estrada e por isso uma gradezinha de protecção na porta, a denunciar a infância que lá floresce.
São um grupo de crianças (ditas) institucionalizadas, retiradas por razões várias às respectivas famílias, e cuja casa passou a ser o Lar de quem nunca o teve verdadeiramente.
Antes de as conhecer antecipei cenários: rostos tristes, rebeldias extremadas a indiciar carência afectiva e alguma frieza nos gestos.
Encontrei crianças alegres, sorridentes, com a rebeldia natural da infância, mas crianças especialmente afectuosas, sequiosas por dar e receber carinho. Crianças que correm, saltam, pulam, riem, como se lhes habitasse a porção mágica da felicidade.
E uma vontade de as pôr no colo a todo o momento, porque sei que não caberão nele por muito mais tempo. Uma ânsia de as beijar permanentemente, porque sei que não receberão os meus beijos com o mesmo entusiasmo no futuro.
E a esperança de que tudo isso fique quando os anos passarem, quando os ventos mudarem, quando a distância, impiedosa, se intrometer entre nós.
Às vezes descubro-lhes no fundo da retina, discreta, uma tristeza diferente, uma fragilidade que comove, um quê de desamparo que tento de imediato cobrir com um abraço.
E o abraço a transportar-me à minha própria infância e ao que dela ficou, o calor aconchegante de um colo, uma ou outra frase que ainda hoje ecoa, uma melodia partilhada, uma mão firme colada á minha...
E de repente sou criança de novo, olhitos arregalados, joelhos arranhados, o cheiro da terra molhada e as mãos cravadas nela, e o som da voz da minha mãe gritando o meu nome pela janela.
Sei por isso que são as pequenas coisas que ficam, gravadas a ferros no baú das memórias e dos afectos.
Pudesse eu guardar certos momentos e conservá-los intactos dentro de uma garrafa, tapá-la bem, e desenhar com ela uma vírgula no tempo.
Sem comentários:
Enviar um comentário