Hoje é um dia difícil, andar, falar, sorrir, dói. As tarefas mais costumeiras furam os ossos.
Está frio e os pés ardem. Vim de pé num autocarro sobrelotado, com as mãos agarradas a ferros para evitar o tombo e apesar do corpo parecer dançar, sequer consegui pôr os meus phones e perder-me na música.
Chego ao trabalho e o cenário não melhora. A minha chefe chama-me. É tempo de avaliar a minha prestação profissional. Vai tentar ser simpática no princípio a disfarçar o nervosismo, vai olhar-me nos olhos durante alguns segundos como que a medir forças, desisitirá perante os meus implacáveis nos seus.
À falta de falhas profissionais aponta-me aquilo que entende como problemas de personalidade. Mais do mesmo: a minha falta de reverência, quase arrogância (diz ela), os meus silêncios e tudo o mais que não caiba na sua gaveta de subordinado. Tantas conversas como esta e já cansa.
Os mesmos tiques, os mesmos receios, a mesma tentativa de me fatiar de forma a caber na tal gaveta de que não faço parte. O medo dos objectos fora de ordem e das gavetas abertas a inquietá-la.
Ela, como tantos, confunde confiança com arrogância, ser reservado com ser antipático, ser calmo (quase impertubável), com ser desinteressado, ser autosuficiente com ser individualista, ou pior, ter ambições clandestinas de liderança.
A gaveta do subordinado é estreita e nela não cabe qualquer demostração de inteligência em dose superior à exigida na cartilha, sob pena de ofuscar a chefia. Nela também não cabe qualquer dose de individualismo que isso aflige o chefe ainda inquieto com a sua propria condição de líder.
O bom subordinado deve aparecer o suficiente para que se perceba que está lá, certo e cumpridor, mas não em demasia, para que não se perceba quem é realmente, do que gosta, o que pensa e o que deseja. Deve cultivar o regime terrível da superficialidade e da socialização estéril, onde tudo o que se espreme é nada.
Não sei socializar, faltam-me as palavras nas conversas de circunstância, soa a automático o 3º ou 4º “bom dia”, o sorriso repuxado, o “tá calor, tá frio”, o “almoças cá hoje?”, o “tá tudo bem contigo?”, o “pareces constipado”... e por aí fora, num extenso rol de banalidades com que se vai enchendo a gaveta.
Hoje é um dia difícil e estar na vertical às vezes dói.
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